(artigo publicado na REVISTA INTERNACIONAL DO ESPIRITISMO – outubro de 2003, pg 456)

A REALIDADE VIRTUAL DE ‘’MATRIX’’

Quem já assistiu os dois primeiros filmes da trilogia, já sabe que “Matrix” é uma ficção científica que conta a saga de um grupo de revoltosos humanos que questiona a natureza da realidade dos eventos que regem a vida humana no mundo. Isso porque descobriram que há muito tempo a Terra houvera sido dominada pelas máquinas, onde a humanidade, subjugada e explorada, dorme e, literalmente, vive de sonhos. Assim, toda a humanidade hiberna, conectada a um megacomputador central, que faz com que as pessoas tomem como reais as experiências vivenciadas em uma realidade virtual (1), criada pela máquina. E os revoltosos, tendo se libertado dessa artificialidade, passam a viver no mundo tridimensional, combatendo as máquinas e tentando abrir os olhos da humanidade para a verdade, de modo a convencê-la da ilusão que caracteriza o mundo em que habita, ainda que o mesmo possa enganosamente proporcionar-lhe prazer e felicidade.

Tanto o produtor como os diretores do filme não negam a influência do budismo em alguns dos conceitos ali expendidos, gerando muita curiosidade, principalmente por parte dos jovens.
De nossa parte, aproveitando esse ensejo, procuraremos mostrar, dentro das limitações deste despretensioso trabalho, que esses conceitos integram várias doutrinas filosóficas e correntes do pensamento que há milênios buscam conhecer a verdade.

O mesmo ocorre com o cristianismo e a doutrina espírita, sendo que, em relação a esta última, o testemunho e as revelações de entidades espirituais de escol fazem mais do que simplesmente corroborar, explicam e justificam as conclusões a que chegaram as correntes que a precederam na história do Homem na Terra.
Inspirou-nos em nosso escopo o ensino de ALLAN KARDEC sobre essa temática: ”As grandes idéias não aparecem nunca de súbito. As que têm a verdade por base contam sempre com precursores, que lhes prepararam parcialmente o caminho …”.(2)

BUDISMO: OS EFEITOS DA ”IMPERMANÊNCIA”

Nos preceitos budistas encontramos o alerta de que o mundo em que vivemos tem como característica básica a impermanência. Com efeito, ensina o budismo que a impermanência é uma lei eterna e universal. Assim sendo, nossos sentidos e os seus objetos, vale dizer, toda a matéria de que o mundo é formado é impermanente. Por essa razão, concluem seus seguidores que: se soubessemos que os sentidos e os objetos são impermanentes, não nos frustraríamos tanto apegando-nos a uma coisa. “É esse apego aos sentidos e seus objetos, (…) impermanentes, que gera o insatisfatório nas nossas vidas. (Entretanto) não fique preocupado pois essa situação desagradável é tão impermanente quanto a situação agradável que você acaba de perder.” (3)

BRAMANISMO E HINDUÍSMO: A HUMANIDADE VIVE EM ”MAYA”
Essa visão dicotômica da realidade – distinguindo o mundo real do ilusório – é também encontrada nos milenares textos vedas e ‘’upanishads’’ : conjunto de hinos, formas sacrificiais, encantamentos e receitas mágicas que constituem o fundamento da tradição religiosa do bramanismo e do hinduísmo .
Dali se extrai a orientação: “não se apegue às coisas deste mundo porque tudo nele é ‘’maya’’ (do sânscrito: ilusão).(4)

SÓCRATES E PLATÃO: ”O MUNDO MATERIAL” E O ”MUNDO DAS IDÉIAS”

Dentro do eterno processo de autoconsciência do Homem essa forma de encarar a realidade não é exclusiva dos pensadores orientais. Tal vem ocorrendo no mundo ocidental há milênios. Assim, encontramos na Grécia Antiga a filosofia de Sócrates, (470-399 a. C.), o qual, juntamente com seu discípulo Platão ( 429-347 a. C.), legou-nos importantes conceitos, encontrados posteriormente no cristianismo e na doutrina espírita, conforme nos mostra ALLAN KARDEC na INTRODUÇÃO ao ‘’Evangelho Segundo o Espiritismo’’.

Assinalou o mestre de Lyon que, para Sócrates o homem é uma alma encarnada, proveniente de outro plano existencial por ele designado como “o mundo das idéias, e ”do verdadeiro, do bem e do belo” e que, por isso, quando em contato com as coisas do mundo material a alma encarnada ” se confunde e se perturba quando se serve do corpo para considerar algum objeto…”, ao passo que quando em contato com o mundo das idéias, a alma ”contempla a própria essência, ela se volta para o que é puro, eterno, imortal…” (5).

Com efeito, segundo Sócrates, não sendo as verdades originárias do mundo material em que vivemos, mas sim do intangível mundo das idéias, cumpre ao filósofo (do grego filos=amigo + sofos=sabedoria), trazê-las para o mundo material, como quem “dá à luz” no trabalho do parto. Por essa razão, deu a esse processo, que consiste em extrair idéias e conclusões por meio de perguntas, o nome de sua mãe: Maiêutica.

Para ilustrar a diversidade existente entre as verdades eternas, que regem esse mundo das idéias, e as ilusões e falsidades a que se submete a humanidade no mundo material ou mundo das aparências, Platão idealizou na sua obra ‘’A República’’(6), a ‘’Alegoria da Caverna”. Trata-se de longa narrativa, aqui adaptada em apertada síntese, onde ensina que tudo se opera neste mundo como se a humanidade tivesse nascido e se desenvolvido agrilhoada em frente a um paredão localizado no fundo de uma caverna e de costas para a entrada desta.

Assim, o clarão de uma fogueira que fosse acesa às suas costas, ou a luz do Sol quando passasse em frente à entrada da caverna projetariam no referido paredão a sombra dos homens. Para estes, estando sempre de costas para a abertura e impossibilitados de mover a cabeça, a única realidade conhecida seria aquela composta de sombras. Na visão de Platão filósofos são aqueles homens que, não acreditando naquela falsa realidade, reúnem forças para vencer a distância até a abertura da caverna e, ali chegando descortinarem, maravilhados, o mundo exterior, não sem antes lutarem contra o ofuscamento até adaptar sua visão. Pois bem, de posse desses novos conhecimentos, buscam os filósofos dividir sua descoberta com o resto da humanidade. Assim, retornam penosamente para o fundo da caverna e tentam convencer os homens a respeito da nova revelação. Mas sofrem perseguições e incompreensões por parte dos que preferem continuar vivendo na ilusão e na ignorância, presos à falsa realidade do seu mundo.

Trata-se, como se vê, de ocorrência que reflete o comportamento dos homens desde sempre.
Registre-se, a propósito, que nosso querido EMMANUEL, o ilustrado mentor de Chico Xavier, no Prefácio do livro ‘’LIBERTAÇÃO” (7) legou-nos a adorável estória do peixinho vermelho, inspirada em antiga lenda egípcia, que muito se assemelha à ‘’Alegoria da Caverna” de Platão.

JESUS-CRISTO: ”O REINO DOS CÉUS” E A ”VIDA FUTURA”

Nestas condições, pode-se dizer que o conceito de ”mundo das idéias” de Sócrates/Platão sintoniza-se perfeitamente com o sentido atribuído por JESUS às expressões – “o reino dos céus” e “vida futura” -, por Ele ensinadas.

Assim é que, indagado por seus discípulos por que razão expressava-se por meio de parábolas, JESUS explicou: “É porque para vós outros foi dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas para eles não lhes foi dado …”(Mateus XIII, v. 10 a 14).

Com efeito, pode-se dizer que “o reino dos Céus” e a “ vida futura” são sítios arquetípicos cujo acesso não está reservado exclusivamente ao iniciado, ao hierofante ou ao asceta. Destina-se, preferencialmente, segundo JESUS aos simples e humildes: “Eu vos rendo glória, meu Pai, senhor do céu e da terra, por haver ocultado essas coisas aos sábios e prudentes, e por as haver revelado aos simples e aos pequenos ” (Mateus, XI, v. 25). De fato, interpretando essa passagem explica ALLAN KARDEC que Deus deixa aos sábios ”a busca dos segredos da Terra e revela os do céu aos mais simples e aos humildes, que se inclinam diante Dele”(8).

ALLAN KARDEC: ”VIDA FUTURA”, UMA REALIDADE MATERIAL

Por outro lado, ao comentar a famosa resposta de JESUS a Pilatos “meu Reino não é desse mundo”, (João, XVIII, v. 33-37) o mestre lionês assim se manifestou: ”… por essas palavras, Jesus designa claramente a vida futura… Esse dogma pode, pois, ser considerado como ponto central do ensinamento do Cristo, por isso está colocado como um dos primeiros nesta obra, porque deve ser a meta de todos os homens…” (9) .
Mais adiante, aduz : “Com o Espiritismo a vida futura não é mais um simples artigo de fé ou simples hipótese. É uma realidade material, provada pelos fatos. Porque são as testemunhas oculares que a vêm descrever em todas as suas fases e peripécias…” (9) .

A REALIDADE E OS SEUS NÍVEIS: DO ILUSÓRIO AO MATERIAL