Reprodução parcial do livro: “Memórias de um suicida’’ – Espírito: Camilo Castelo Branco – Psicografado por Yvonne Pereira

Dpto. Editorial da Federação Espírita Brasileira

19ª edição – 1995

Alguns trechos dos Capítulos   I a III

Nota do  BLOG:

BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR :

Camilo Castelo Branco foi um escritor português, romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor. Filho de uma pequena família burguesa, nasceu em Lisboa no dia 16 de março de 1825. Representante do segundo momento do Romantismo português, Camilo Castelo Branco figura entre os mais importantes escritores da literatura portuguesa. A vida atribulada serviu de tema para sua obra, que conquistou o público e permitiu que Camilo Castelo Branco vivesse exclusivamente do trabalho de escritor, (………..).  A instabilidade psicológica e a volubilidade sentimental, principais características de sua personalidade, foram responsáveis pela formação de seu mundo ficcional.  A obra de Camilo Castelo Branco é predominantemente romântica (……..) influenciado pelo estilo de Almeida Garrett, grande entusiasta do teatro português e uma das maiores figuras do romantismo, além de ter sido leitor de Ann Radcliffe, escritora inglesa pioneira do romance gótico, daí o gosto por temas soturnos e fúnebres.  (…………..)  foi hábil narrador de histórias românticas ou romanescas, aliando as peripécias quase rocambolescas de suas novelas a explicações psicológicas, sempre contido pela tradição literária e pelos cânones clássicos. (…..)

Camilo Castelo Branco viveu cercado de problemas e no fim da vida estava quase cego (em consequência de uma sífilis) e os dois filhos que tivera com Ana Palácios – um tinha problemas mentais e o outro era rebelde – que lhe causaram muitos sofrimentos. Não suportando todos os abatimentos, Camilo suicida-se com um tiro de pistola.

“Memórias de um suicida’’

PRIMEIRA PARTE

OS RÉPROBOS

(Nota do  BLOG :  réprobo: aquele que foi banido da sociedade)

CAPITULO I

O Vale dos Suicidas

                           ‘’Precisamente no mês de janeiro do ano da graça de 1891, fora eu surpreendido com meu aprisionamento em região do Mundo Invisível cujo desolador panorama era composto por vales profundos, a que as sombras presidiam : gargantas sinuosas e cavernas sinistras, no interior das quais uivavam, quais maltas de demônios enfurecidos, Espíritos que foram homens, dementados pela intensidade e estranheza, verdadeiramente inconcebíveis, dos sofrimentos que os martirizavam. Nessa paragem aflitiva a vista torturada do grilheta não distinguiria sequer o doce vulto de um arvoredo que testemunhasse suas horas de desesperação; tampouco paisagens confortativas, que pudessem distrai-lo da contemplação cansativa dessas gargantas onde não penetrava outra forma de vida que não a traduzida pelo supremo horror ! O solo, coberto de matérias enegrecidas e fétidas, lembrando a fuligem, era imundo, pastoso, escorregadio, repugnante ! O ar pesadíssimo, asfixiante, gelado, enoitado por bulcões ameaçadores como se eternas tempestades rugissem em torno; e, ao respirarem-no, os Espíritos ali ergastulados (Nota do BLOG  ergastulados: encarcerados) sufocavam-se como se matérias pulverizadas, nocivas mais do que a cinza e a cal, lhes invadissem as vias respiratórias, martirizando-os com suplício inconcebível ao cérebro humano habituado às gloriosas claridades do Sol — dádiva celeste que diariamente abençoa a Terra — e às correntes vivificadoras dos ventos sadios que tonificam a organização física dos seus habitantes. Não havia então ali, como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem esperança: tudo em seu âmbito marcado pela desgraça era miséria, assombro, desespero e horror. Dir-se-ia a caverna tétrica do Incompreensível, indescritível a rigor até mesmo por um Espírito que sofresse a penalidade de habitá-la.

                           (…………………………..)    

                            Mas na caverna onde padeci o martírio que me surpreendeu além do túmulo, nada disso havia! Aqui, era a dor que nada consola, a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que idéia alguma tranquilizadora vem orvalhar de esperança! Não há céu, não há luz, não há sol, não há perfume, não há tréguas! O que há é o choro convulso e inconsolável dos condenados que nunca se harmonizam! O assombroso “ranger de dentes” da advertência prudente e sábia do sábio Mestre de Nazaré! A blasfêmia acintosa do réprobo a se acusar a cada novo rebate da mente flagelada pelas recordações penosas! A loucura inalterável de consciências contundidas pelo vergastar infame dos remorsos! O que há é a raiva envenenada daquele que já não pode chorar, porque ficou exausto sob o excesso das lágrimas! O que há é o desaponto, a surpresa aterradora daquele que se sente vivo a despeito de se haver arrojado na morte! Ë a revolta, a praga, o insulto, o ulular de corações que o percutir monstruoso da expiação transformou em feras! O que há é a consciência conflagrada, a alma ofendida pela imprudência das ações cometidas, a mente revolucionada, as faculdades espirituais envolvidas nas trevas oriundas de si mesma! O que há é o “ranger de dentes nas trevas exteriores” de um presídio criado pelo crime, votado ao martírio e consagrado à emenda! É o inferno, na mais hedionda e dramática exposição, porque, além do mais, existem cenas repulsivas de animalidade, práticas abjetas dos mais sórdidos instintos, as quais eu me pejaria de revelar aos meus irmãos, os homens! Quem ali temporariamente estaciona, coma eu estacionei, são grandes vultos do crime! Ë a escória do mundo espiritual — falanges de suicidas que periodicamente para seus canais afluem levadas pelo turbilhão das desgraças em que se enredaram, a se despojarem das forças vitais que se encontram, geralmente intactas, revestindo-lhes os envoltórios físico-espirituais, por sequências sacrílegas do suicídio, e provindas, preferentemente, de Portugal, da Espanha, do Brasil e colônias portuguesas da África, infelizes carentes do auxílio confortativo da prece; aqueles, levianos e inconsequentes, que, fartos da vida que não quiseram compreender, se aventuraram ao Desconhecido, em procura do Olvido, pelos despenhadeiros da Morte! O Além-túmulo acha-se longe de ser a abstração que na Terra se supõe, ou as regiões paradisíacas fáceis de conquistar com algumas poucas fórmulas inexpressivas. Ele é, antes, simplesmente a Vida Real, e o que encontramos ao penetrar suas regiões é Vida! Vida intensa a se desdobrar em modalidades infinitas de expressão, sabiamente dividida em continentes e falanges como a Terra o é em nações e raças; dispondo de organizações sociais e educativas modelares, a servirem de padrão para o progresso da Humanidade. É no Invisível, mais do que em mundos planetários, que as criaturas humanas colhem inspiração para os progressos que lentamente aplicam no orbe. Não sei corno decorrerão os trabalhos correcionais para suicidas nos demais núcleos ou colónias espirituais destinadas aos mesmos fins e que se desdobrarão sob céus portugueses. espanhóis e seus derivados. Sei apenas é que fiz parte  de sinistra falange detida, por efeito natural e lógico. nessa paragem horrenda cuja lembrança ainda hoje me repugna à sensibilidade. É bem possível que haja quem ponha a discussões mordazes a veracidade do que vai descrito nestas páginas. Dirão que a fantasia mórbida de um inconsciente exausto de assimilar Dante terá produzido por conta própria a exposição aqui ventilada esquecendo-se de que, ao contrário, o vate florentino é que conheceria o que o presente século sente dificuldades em aceitar …  Não os convidarei a crer. Não é assunto que se imponha à crença, mas ao raciocínio, ao exame, à investigação.  Se sabem raciocinar e podem investigar – que o façam, e chegarão a conclusões lógicas que os colocarão na pista de verdades assaz interessantes para toda a espécie humana! O a que os convido, o que ardentemente desejo e para que tenho todo o interesse em pugnar, é que se eximam de conhecer essa realidade através dos canais trevosos a que me expus, dando-me ao suIcídio por desobrigar-me da advertência de que a morte nada mais é do que a verdadeira forma de existir! … De outro modo, que pretenderia o leitor existisse nas camadas invisíveis que contornam os mundos ou planetas, senão a matriz de tudo quanto neles se reflete ? !… Em nenhuma parte se encontraria a abstração, ou o nada, pois que semelhantes vocábulos são inexpressivos no Universo criado e regido por uma Inteligência Onipotente! Negar o que se desconhece, por se não encontrar à altura de compreender o que se nega, é insânia incompatível com os dias atuais. O século convida o homem à investigação e ao livre exame, porque a Ciência nas suas múltiplas manifestações vem provando a inexatidão do impossível dentro do seu cada vez mais dilatado raio de ação. E as provas da realidade dos continentes superterrenos encontram-se nos arcanos das ciências psíquicas transcendentais, às quais o homem há ligado muito relativa importância até hoje. (………..). Era eu, pois, presidiário dessa cova ominosa do horror! Não habitava, porém, ali sozinho. Acompanhava–me uma coletividade, falange extensa de delinquentes, como eu. Então ainda me sentia cego.   

                            Pelo menos, sugestionava-me de que o era, e, como tal, me conservava, não obstante minha cegueira só se definir, em verdade, pela inferioridade moral do Espírito distanciado da Luz . A mim cego não passaria, contudo, despercebido o que se apresentasse mau, feio, sinistro, imoral, obsceno, pois conservavam meus olhos visão bastante para toda essa escória contemplar — agravando-se destarte a minha desdita. Dotado de grande sensibilidade, para maior mal tinha-a agora como superexcitada, o que me levava a experimentar também os sofrimentos dos outros mártires meus compares, fenômeno esse ocasionado pelas correntes mentais que se desejavam sobre toda a falange e oriundas dela. própria, que assim realizava impressionante afinidade de classe, o que é o mesmo que asseverar que sofríamos também as sugestões dos sofrimentos uns dos outros, além das insídias a que nos submetiam os nossos próprios sofrimentos. (1)

1) Após a morte, antes que o Espírito se oriente, gravitando para o verdadeiro “lar espiritual” que lhe cabe, será sempre necessário o estágio numa “antecâmara”, numa região cuja densidade e aflitivas configurações locais corresponderão aos estados vibratórios e mentais do recém-desencarnado. Ai se deterá até que seja naturalmente “desanimalizado”, isto é, que se desfaça dos fluidos e forças vitais de que são impregnados todos os corpos materiais. Por aí se verá que a estada será temporária nesse umbral do Além, conquanto geralmente penosa. Tais sejam o caráter, as ações praticadas, o gênero de vida, o gênero de morte que teve a entidade desencarnada — tais serão o tempo e a penúria no local descrito. Existem aqueles que ai apenas se demoram algumas horas. Outros levarão meses, anos consecutivos, voltando à reencarnação sem atingirem a Espiritualidade. Em se tratando de suicidas o caso assume proporções especiais, por dolorosas e complexas. Estes ai se demorarão, geralmente, o tempo que ainda lhes restava para conclusão do compromisso da existência que prematuramente cortaram. Trazendo carregamentos avantajados de forças vitais animalizadas, além das bagagens das paixões criminosas e uma desorganização mental, nervosa e vibratória completas, é fácil entrever qual será a situação desses infelizes para quem um só bálsamo existe: — a prece das almas caritativas! Se, por muito longo, esse estágio exorbite das medidas normais ao caso — a reencarnação imediata será a terapêutica indicada, embora acerba e dolorosa, o que será preferível a muitos anos em tão desgraçada situação, assim se completando, então, o tempo que faltava ao término da existência cortada.  

                            Às vezes, conflitos brutais se verificavam pelos becos lamacentos onde se enfileiravam as cavernas que nos serviam de domicilio. Invariavelmente irritados, por motivos insignificantes nos atirávamos uns contra os outros em lutas corporais violentas, nas quais, tal como sucede nas baixas camadas sociais terrenas, levaria sempre a melhor aquele que maior destreza e truculência apresentasse. Frequentemente fui ali insultado, ridiculizado nos meus sentimentos mais caros e delicados com chistes e sarcasmos que me revoltavam até o âmago; apedrejado e espancado até que, excitado por fobia idêntica, eu me atirava a represálias selvagens, ombreando-me com os agressores e com eles refocilando na lama da mesma ceva espiritual.

                            A fome, a sede, o frio enregelador, a fadiga, a insônia; exigências físicas martirizantes, fáceis de o leitor entrever; a natureza como que aguçada em todos os seus desejos e apetites, qual se ainda trouxéssemos o envoltório carnal; a promiscuidade, muito vexatória, de Espíritos que foram homens e dos que animaram corpos femininos; tempestades constantes, inundações mesmo, a lama, o fétido, as sombras perenes, a desesperança de nos vermos livres de tantos martírios sobrepostos, o supremo desconforto físico e moral — eis o panorama por assim dizer “material” que emoldurava os nossos ainda mais pungentes padecimentos morais! Nem mesmo sonhar com o Belo, dar-se a devaneios balsamizantes ou a recordações beneficente era concedido àquele que porventura possuísse capacidade para o fazer. Naquele ambiente superlotado de males o pensamento jazia encarcerado nas fráguas que o contornavam, só podendo emitir vibrações que se afinassem ao tono da própria perfídia local… E, envolvidos em tão enlouquecedores fogos, não havia ninguém que pudesse atingir um instante de serenidade e reflexão para se lembrar de Deus e bradar por Sua paternal misericórdia! Não se podia orar porque a oração é um bem, é um bálsamo, é uma trégua, é uma esperança! e aos desgraçados que para lá se atiravam nas torrentes do suicídio impossível seria atingir tão altas mercês! Não sabíamos quando era dia ou quando voltava a noite, porque sombras perenes rodeavam as horas que vivíamos. Perdêramos a noção do tempo. Apenas esmagadora sensação de distância e longevidade do que representasse o passado ficara para açoitar nossas interrogações, afigurando-se-nos  que estávamos há séculos jungidos a tão ríspido calvário! Dali não esperávamos sair, conquanto fosse tal desejo urna das causticantes obsessões que nos alucinavam… pois o Desânimo gerador da desesperança que nos armara o gesto de suicidas afirmava-nos que tal estado de coisas seria eterno!

                             (……………………………….) A contagem do tempo, para aqueles que mergulhavam nesse abismo, estacionara no momento exato em que fizera para sempre tombar a própria armadura de carne! Daí para cá só existiam — assombro, confusão, enganosas induções, suposições insidiosas! Igualmente ignorávamos em que local nos encontrávamos, que significação teria nossa espantosa situação. Tentávamos, aflitos, furtarmo-nos a ela, sem percebermos que era cabedal de nossa própria mente conflagrada, de nossas vibrações entrechocadas por mil malefícios indescritíveis! Procurávamos então fugir do local maldito para voltarmos aos nossos lares; e o fazíamos desabaladamente, em insanas correrias de loucos furiosos! Aasveros    malditos, sem consolo, sem paz, sem descanso em parte alguma — . ao passo que correntes irresistíveis, como ímãs poderosos, atraíam-nos de volta ao tugúrio sombrio, arrastando-nos de envolta a um atro turbilhão de nuvens sufocadoras e estonteantes! De outras vezes, tateando nas sombras, lá íamos, por entre gargantas, vielas e becos, sem lograrmos indicio de saída… Cavernas, sempre cavernas — todas numeradas —; ou longos espaços pantanosos quais lagos lodosos circulados de muralhas abruptas, que nos afiguravam levantadas em pedra e ferro, como se fôramos sepultados vivos nas profundas tenebrosidades de algum vulcão! Era um labirinto onde nos perdíamos sem podermos jamais alcançar o fim! Por vezes acontecia não sabermos retornar ao ponto de partida, isto é, às cavernas que nos serviam de domicílio, o que forçava a permanência ao relento até que deparássemos algum covil desabitado para outra vez nos abrigarmos. Nossa mais vulgar impressão era de que nos encontrávamos encarcerados no subsolo, em presídio cavado no seio da Terra, quem sabia se nas entranhas de uma cordilheira, da qual fizesse parte também algum vulcão extinto, como pareciam atestar aqueles imensuráveis poços de lama com paredes escalavradas lembrando minerais pesados?!… Aterrados, entrávamos então a bramir em coro, furiosamente, quais maltas de chacais danados, para que nos retirassem dali, restituindo-nos à liberdade ! As mais violentas manifestações de terror seguiam-se então; e tudo quanto o leitor imaginar possa, dentro da confusão de cenas patéticas inventadas pela fobia do Horror, ficará muito aquém da expressão real por nós vivida nessas horas criadas pelos nossos próprios pensamentos distanciados da Luz e do Amor de Deus!                      (……………………………..)

                             Nas peripécias que o suicida entra a curtir depois do desbarato que prematuramente o levou ao túmulo, o Vale Sinistro apenas representa um estágio temporário, sendo ele para lá encaminhado por movimento de impulsão natural, com o qual se afina, até que se desfaçam as pesadas cadeias que o atrelam ao corpo físico terreno, destruído antes da ocasião prevista pela lei natural. Será preciso que se desagreguem dele as poderosas camadas de fluidos vitais que lhe revestiam a organização física, adaptadas por afinidades especiais da Grande Mãe Natureza à organização astral, ou seja, ao perispirito, as quais nele se aglomeram em reservas suficientes para o compromisso da existência completa; que se arrefeçam, enfim, as mesmas afinidades, labor que na individualidade de um suicida será acompanhado das mais aflitivas dificuldades, de morosidade impressionante, para, só então, obter possibilidade vibratória que lhe faculte alívio e progresso (2).

                                     (2) As impressões e sensações penosas, oriundas do corpo carnal, que acompanham o Espirito ainda materializado, chamaremos  repercussões magnéticas, em virtude do magnetismo animal existente em todos os seres vivos, e suas afinidades com o perispirito. Trata-se de fenômeno idêntico ao que faz a um homem que teve o braço ou a perna amputados sentir coceiras na palma da mão que já não existe com ele, ou na sola do pé, igualmente inexistente. Conhecemos em certo hospital um pobre operário que teve ambas as pernas amputadas senti-las tão vivamente consigo assim como os pés, que, esquecido de que já não os possuía, procurou levantar-se, levando, porém, estrondosa queda e ferindo-se. Tais fenômenos são fáceis de observar.

                            De outro modo, tal seja a feição seu caráter, tais os deméritos e grau de responsabilidade gerais — tal será o agravo da situação, tal a intensidade dos padecimentos a experimentar, pois, nestes casos, serão apenas as consequências decepcionantes do suicídio que lhe afligirão a alma, mas também o reverso dos pecaminosos anteriormente cometidos.

                            Periodicamente, singular caravana visitava esse antro de sombras. Era como a inspeção de alguma associação caridosa, assistência protetora de instituição humanitária, cujos abnegados fins não se poderiam pôr em dúvida. Vinha à procura daqueles dentre nós cujos fluidos vitais, arrefecidos pela desintegração completa da matéria, permitissem locomoção para as camadas do Invisível intermediário, ou de transição. Supúnhamos tratar-se, a caravana, de um grupo de homens. Mas na realidade eram Espíritos que estendiam a fraternidade ao extremo de se materializarem o suficiente para se tornarem plenamente percebidos à nossa precária visão e nos infundirem confiança no socorro que nos davam. Trajados de branco, apresentavam-se caminha nelas ruas lamacentas do Vale, de um a um, em coluna: rigorosamente disciplinada, enquanto, olhando-os atentamente, distinguiríamos, à altura do peito de todos, pequena cruz azul-celeste, o que parecia ser um emblema, um distintivo.

                            Senhoras faziam parte dessa caravana. Precedia, porém, a coluna, pequeno pelotão de lanceiros, qual batedor de caminhos, ao passo que vários outros milicianos da mesma arma rodeavam os visitadores, como tecendo um cordão de isolamento, o que esclarecia serem estes muito bem guardados contra quaisquer hostilidades que pudessem surgir do exterior. Com a destra o oficial comandante erguia alvinitente (Nota : branca e brilhante) flâmula, na qual se lia, em caracteres também azul-celeste, esta extraordinária legenda, que tinha o dom de infundir insopitável e singular temor:

— LEGIÃO DOS SERVOS DE MARIA —

                             Os lanceiros, ostentando escudo e lança, tinham tez bronzeada e trajavam-se com sobriedade, lembrando guerreiros egípcios da antiguidade. E, chefiando a expedição, destacava-se varão respeitável, o qual trazia avental branco e insígnias de médico a par da cruz já referida. Cobria-lhe a cabeça, porém, em vez do gorro característico, um turbante hindu, cujas dobras eram atadas à frente pela tradicional esmeralda, símbolo dos esculápios. Entravam aqui e ali, pelo interior das cavernas habitadas, examinando seus ocupantes. Curvavam-se, cheios de piedade, junto das sarjetas, levantando aqui e acolá algum desgraçado tombado sob o excesso de sofrimento; retiravam os que apresentassem condições de poderem ser socorridos e colocavam-nos em macas conduzidas por varões que se diriam serviçais ou aprendizes. Voz grave e dominante, de alguém invisível que falasse pairando no ar, guiava-os no caridoso afã, esclarecendo detalhes ou desfazendo confusões momentaneamente suscitadas. A mesma voz fazia a chamada dos prisioneiros a serem socorridos, proferindo seus nomes próprios, o que fazia que se apresentassem, sem a necessidade de serem procurados, aqueles que se encontrassem em melhores condições, facilitando destarte o serviço dos caravaneiros. Hoje posso dizer que todas essas vozes amigas e protetoras eram transmitidas através de ondas delicadas e sensíveis do éter, com o sublime concurso de aparelhamentos magnéticos mantidos para fins humanitários em determinados pontos do Invisível, isto é, justamente na localidade que nos receberia ao sairmos do Vale. Mas, então, ignorávamos o pormenor e muito confusos nos sentíamos. As macas, transportadas cuidadosamente, eram guardadas pelo cordão de isolamento já referido e abrigadas no interior de grandes veículos à feição de comboios, que acompanhavam a expedição. Esses comboios, no entanto, apresentavam singularidade interessante, digna de relato. Em vez de apresentarem os vagões comuns às estradas de ferro, como os que conhecíamos, lembravam, antes, meio de transporte primitivo, pois se compunham de pequenas diligências atadas uma às outras e rodeadas de persianas muito espessas, o que impediria ao passageiro verificar os locais por onde deveria transitar. Brancos, leves, como burilados em matérias específicas habilmente laqueadas, eram puxados por formosas parelhas de cavalos também brancos, nobres animais cuja extraordinária beleza e elegância incomum despertariam nossa atenção se estivéssemos em condições de algo notar para além das desgraças que nos mantinham absorvidos dentro de nosso âmbito pessoal. Dir-se-iam, porém, exemplares da mais alta raça normanda, vigorosos e inteligentes, as belas crinas ondulantes e graciosas enfeitando-lhes os altivos pescoços quais mantos de seda, níveos e finalmente franjados. Nos carros distinguia-se também o mesmo emblema azul-celeste e a legenda respeitável. Geralmente, os infelizes assim socorridos encontravam-se desfalecidos, exânimes, como atingidos de singular estado comatoso. Outros, no entanto, alucinados ou doloridos, infundiriam compaixão pelo estado de supremo desalento em que se conservavam.

                            Depois de rigorosa busca, a estranha coluna marchava em retirada até o local em que se postava o comboio, igualmente defendido por lanceiros hindus.

                           Silenciosamente cortava pelos becos e vielas, afastava-se, afastava-se… desaparecendo de nossas vistas enquanto mergulhávamos outra vez na pesada solidão que nos cercava…

                            ‘’Em vão clamavam por socorro os que se sentiam preteridos, incapacitados de compreenderem que, se assim sucedia, era porque nem todos se encontravam em condições vibratórias para emigrarem para regiões menos hostis. Em vão suplicavam justiça e compaixão ou se amotinavam, revoltados, exigindo que os deixassem também seguir com os demais. Não respondiam os caravaneiros com um gesto sequer; e se algum mais desgraçado ou audacioso tentasse assaltar as viaturas a fim de atingi-las e nelas ingressar, dez, vinte lanças faziam-no recuar, interceptando-lhe a passagem. Então, um coro hediondo de uivos e choro sinistros, de pragas e gargalhadas satânicas, o ranger do dentes comum ao réprobo que estertora nas trevas dos males por si próprio forjados, repercutiam longa e dolorosamente pelas ruas lamacentas, parecendo que loucura coletiva atacara os míseros detentos, elevando suas raivas ao incompreensível no linguajar humano! E assim ficavam… quanto tempo?… Oh! Deus piedoso! Quanto tempo?… Até que suas inimagináveis condições de suicidas, de mortos-vivos, lhes permitissem também a transferência para localidade menos trágica…’’

CAPITULO II

Os réprobos

‘’Em geral aqueles que se arrojam ao suicídio, para sempre esperam livrar-se de dissabores julgados insuportáveis, de sofrimentos e problemas considerados insolúveis pela tibiez da vontade deseducada, que se acovarda em presença, muitas vezes, da vergonha do descrédito ou da desonra, dos remorsos deprimentes postos a enxovalharem a consciência, consequências de ações praticadas à revelia das leis do Bem e da Justiça.

Também eu assim pensei, muito apesar da auréola de idealista que minha vaidade acreditava glorificando–me a fronte.

Enganei-me, porém; e lutas infinitamente mais vivas e mais ríspidas esperavam-me a dentro do túmulo a fim de me chicotearem a alma de descrente e revel, com merecida justiça.

As primeiras horas que se seguiram ao gesto brutal de que usei, para comigo mesmo, passaram-se sem que verdadeiramente eu pudesse dar acordo de mim. Meu Espírito, rudemente violentado, como que desmaiara, sofrendo ignóbil colapso. Os sentidos, as faculdades que traduzem o “eu” racional, paralisaram-se como se indescritível cataclismo houvesse desbaratado o mundo, prevalecendo, porém, acima dos destroços, a sensação forte do aniquilamento que sobre meu ser acabara de cair.

Fora como se aquele estampido maldito, que até hoje ecoa sinistramente em minhas vibrações mentais —, sempre que, descerrando os véus da memória, como neste instante, revivo o passado execrável — tivesse dispersado  uma a uma as moléculas que em meu ser constituíssem a Vida!

A linguagem humana ainda não precisou Inventar vocábulos bastante justos e compreensíveis para definir as impressões absolutamente inconcebíveis, que passam a contaminar o “eu” de um suicida logo às primeiras horas que se seguem ao desastre, as quais sobem e se avolumam, envolvem-se em complexos e se radicam e cristalizam num crescendo que traduz estado vibratório e mental que o homem não pode compreender, porque está fora da sua possibilidade de criatura que, mercê de Deus, se conservou aquém dessa anormalidade. Para entendê-la e medir com precisão a intensidade dessa dramática surpresa, só outro Espírito cujas faculdades se houvessem queimado nas efervescências da mesma dor!

Nessas primeiras horas, que por si mesmas constituiriam a configuração do abismo em que se precipitou, se não representassem apenas o prelúdio da diabólica sinfonia que será constrangido a interpretar pelas disposições lógicas das leis naturais que violou, o suicida, semi-inconsciente, adormentado, desacordado sem que, para maior suplício, se lhe obscureça de todo a percepção dos sentidos, sente-se dolorosamente contundido, nulo, dispersado em seus milhões de filamentos psíquicos violentamente atingidos pelo malvado acontecimento.

Paradoxos turbilhonam em volta dele, afligindo-lhe ai tenuidade das percepções com martirizantes girândolas de sensações confusas. Perde-se no vácuo… Ignora-se… Não obstante aterra-se, acovarda-se, sente a profundidade apavorante do erro contra o qual colidiu, deprime-se na aniquiladora certeza de que ultrapassou os limites das ações que lhe eram permitidas praticar, desnorteia-se entrevendo que avançou demasiadamente, para além da demarcação traçada pela Razão! É o traumatismo psíquico, o choque nefasto que o dilacerou com suas tenazes inevitáveis, e o qual, para ser minorado, dele exigirá um roteiro de urzes e lágrimas, decênios de rijos testemunhos até que se reconduza às vias naturais do progresso, interrompidas pelo ato arbitrário e contraproducente.

Pouco a pouco, senti ressuscitando das sombras confusas em que mergulhei meu pobre Espírito, após a queda do corpo físico, o atributo máximo que a Paternidade Divina impôs sobre aqueles que, no decorrer dos milênios, deverão refletir Sua imagem e semelhança: — a Consciência! a Memória! o divino dom de pensar! Senti-me enregelar de frio. Tiritava! Impressão incômoda, de que vestes de gelo se me apegavam ao corpo, provocou-me inavaliável mal-estar. Faltava-me, ao demais, o ar para o livre mecanismo dos pulmões, o que me levou a crer que, uma vez que eu me desejara furtar à vida, era a morte que se aproximava com seu cortejo de sintomas dilacerantes. Odores fétidos e nauseabundos, todavia, revoltavam-me brutalmente olfato. Dor aguda, violenta, enlouquecedora, arremeteu-se instantaneamente sobre meu corpo por inteiro, localizando-se particularmente no cérebro e iniciando-se no aparelho auditivo. Presa de convulsões indescritíveis de dor física, levei a destra ao ouvido direito: — o sangue corria do orifício causado pelo projetil da arma de fogo de que me servira para o suicídio e manchou-me as mãos, as vestes, o corpo…

Eu nada enxergava, porém. Convém recordar que meu suicídio derivou-se da revolta por me encontrar cego, expiação que considerei superior às minhas forças, injusta punição da Natureza aos meus olhos necessitados de ver, para que me fosse dado obter, pelo trabalho, a subsistência honrada e altiva.

Sentia-me, pois, ainda cego; e, para cúmulo do meu estado de desorientação, encontrava-me ferido. Tão-somente ferido e não morto! porque a vida continuava em mim como antes do suicídio! Passei a reunir idéias, mau grado meu. Revi minha vida em retrospecto, até à infância, e sem mesmo inibir o drama do último ato, programação extra sob minha inteira responsabilidade. Sentindo-me vivo, averiguei consequentemente, que o ferimento que em mim fizera, tentando matar-me, fora insuficiente, aumentando assim os já tão grandes sofrimentos que desde longo tempo me vinham perseguindo a existência.

Supus-me preso a um leito de hospital ou em minha própria casa. Mas a impossibilidade de reconhecer o local, pois nada via; os incômodos que me afligiam, a solidão que me rodeava, entraram a me angustiar profundamente, enquanto lúgubres pressentimentos me avisavam de que acontecimentos irremediáveis se haviam confirmado.

Bradei por meus familiares, por amigos que eu conhecia afeiçoados bastante para me acompanharem em momentos críticos. O mais surpreendente silêncio continuou enervando-me. Indaguei mal-humorado por enfermeiros, por médicos que possivelmente me atenderiam, dado que me não encontrasse em minha residência e sim retido em algum hospital; por serviçais, criados, fosse quem fosse, que me obsequiar pudessem, abrindo as janelas do aposento onde me supunha recolhido, a fim de que correntes de ar purificado me reconfortassem os pulmões; que me favorecessem coberturas quentes, acendessem a lareira para amenizar a gelidez que me entorpecia os membros, providenciando bálsamo às dores que me supliciavam o organismo, e alimento, e água, porque eu tinha fome e tinha sede! Com espanto, em vez das respostas amistosas por que tanto suspirava, o que minha audição distinguiu, passadas algumas horas, foi um vozerio ensurdecedor, que, indeciso e longínquo a princípio, como a destacar-se de um pesadelo, definiu-se gradativamente até positivar–se em pormenores concludentes. Era um coro sinistro, de muitas vozes confundidas em atropelos, desnorteadas, como aconteceria numa assembléia de loucos. No entanto, estas vozes não falavam entre si, não conversavam. Blasfemavam, queixavam-se de múltiplas desventuras, lamentavam-se, reclamavam, uivavam, gritavam enfurecidas, gemiam, estertoravam, choravam desoladoramente, derramando pranto hediondo, pelo tono de desesperação com que se particularizava; suplicavam, raivosas, socorro e compaixão! Aterrado senti que estranhos empuxões, como arrepios irresistíveis, transmitiam-me influenciações abomináveis, provindas desse todo que se revelava através da audição, estabelecendo corrente similar entre meu ser superexcitado e aqueles cujo vozerio eu distinguia.

Esse coro, isócrono,  ( Nota isócrono: ritimado) rigorosamente observado e medido em seus intervalos, infundiu-me tão grande terror que, reunindo todas as forças de que poderia o meu Espírito dispor em tão molesta situação, movimentei-me no intuito de afastar-me de onde me encontrava para local em que não mais o ouvisse. Tateando nas trevas tentei caminhar. Mas dir-se-ia que raízes vigorosas plantavam-me naquele lugar úmido e gelado em que me deparava. Não podia despegar-me! Sim! Eram cadeias pesadas que me escravizavam, raízes cheias de seiva, que me atinham grilhetado naquele extraordinário leito por mim desconhecido, impossibilitando-me o desejado afastamento. Aliás, como fugir se estava ferido, desfazendo-me em hemorragias internas, manchadas as vestes de sangue, e cego, positivamente cego?!

Como apresentar-me a público em tão repugnante estado?… A covardia — a mesma hidra que me atraíra para o abismo em que agora me convulsionava — alongou ainda mais seus tentáculos insaciáveis e colheu-me irremediavelmente! Esqueci-me de que era homem, ainda uma segunda vez! e que cumpria lutar para tentar vitória, fosse a que preço fosse de sofrimento! Reduzi-me por isso à miséria do vencido! E, considerando insolúvel a situação, entreguei-me às lágrimas e chorei angustiosamente, ignorando o que tentar para meu socorro. Mas, enquanto me desfazia em prantos, o coro de loucos, sempre o mesmo, trágico, funéreo, regular como o pêndulo de um, relógio, acompanhava-me com singular similitude, atraindo-me corno se imanado de irresistíveis afinidades… Insisti no desejo de me furtar à terrível audição. Após esforços desesperados, levantei-me. Meu corpo enregelado, os músculos retesados por entorpecimento geral, dificultavam-me sobremodo o intento. Todavia, levantei-me. Ao fazê-lo, porém, cheiro penetrante de sangue e vísceras putrefatos rescendeu em torno, repugnando-me até às náuseas. Partia do local exato em que eu estivera dormindo. Não compreendia como poderia cheirar tão desagradavelmente o leito onde me achava. Para mim seria o mesmo que me acolhia todas as noites! E, no entanto, que de odores fétidos me surpreendiam agora! Atribuí o fato ao ferimento que fizera na intenção de matar-me, a fim de explicar-me de algum modo a estranha aflição, ao sangue que corria, manchando-me as vestes. Realmente! Eu me encontrava empastado de peçonha,  como um. lodo asqueroso que dessorasse (Nota do BLOG. :desorasse : escorresse) de meu próprio corpo, empapando incomodativamente a indumentária que usava, pois, com surpresa, surpreendi-me trajando cerimoniosamente, não obstante retido num leito de dor.    

Mas, ao mesmo tempo que assim me apresentava satisfações, confundia-me na interrogação de como poderia assim ser visto não ser cabível que um simples ferimento, mesmo a quantidade de sangue espargido, pudesse tresandar a tanta podridão sem que meus amigos e enfermeiros deixassem de providenciar a devida higienização. Inquieto, tateei na escuridão com o intuito de encontrar a porta de saída que me era habitual, já, que todos me abandonavam em hora tão crítica. Tropecei, porém, em dado momento, num montão de destroços e, instintivamente, curvei-me para o chão, a examinar o que assim me interceptava os passos. Então, repentinamente, a loucura irremediável apoderou-se de minhas faculdades e entrei a gritar e uivar qual demônio enfurecido, respondendo na mesma dramática tonalidade à macabra sinfonia cujo coro de vozes não cessava de perseguir minha audição, em intermitências de angustiante expectativa. O montão de escombros era nada menos do que a terra de uma cova recentemente fechada! Não sei como, estando cego, pude entrever, em meio as sombras que me rodeavam, o que existia em torno! Eu me encontrava num cemitério! Os túmulos, com suas tristes cruzes em mármore branco ou madeira negra, ladeando imagens sugestivas de anjos pensativos, alinhavam-se na imobilidade majestosa do drama em que figuravam. A confusão cresceu:

— Por que me encontraria ali? Como viera, pois nenhuma lembrança me acorria ?… E

que viera fazer sozinho, ferido, dolorido, extenuado?

Era verdade que “tentara” o suicídio, mas… Sussurro macabro, qual sugestão irremovível da consciência esclarecendo a memória aturdida pelo ineditismo presenciado, percutiu estrondosamente pelos recôncavos alarmados do meu ser:

“Não quiseste o suicídio?… Pois aí o tens…”

Mas, como assim ?… Como poderia ser… se eu não morrera?’  Acaso não me sentia ali vivo?… Por que então sozinho, imerso na solidão tétrica da morada dos mortos ?  Os fatos irremediáveis, porém, impõem-se aos homens como aos Espíritos com majestosa naturalidade. Nulo concluíra ainda minhas ingênuas e dramáticas interrogações, e vejo-me, a mim próprio! como à frente de um espelho, morto, estirado num ataúde, em franco e:dado de decomposição, no fundo de uma sepultura, justamente aquela sobre a qual acabava de tropeçar! Fugi espavorido, desejoso de ocultar-me de mim mesmo, obsidiado pelo mais tenebroso horror, enquanto gargalhadas estrondosas, de indivíduos que eu não lograva enxergar, explodiam atrás de mim e o coro nefasto perseguia meus ouvidos torturados, para onde quer que me refugiasse. Como louco que realmente me tornara, eu corria, corria, enquanto aos meus olhos cegos se desenhava a hediondez satânica do meu próprio cadáver apodrecendo no túmulo, empastado de lama gordurosa, coberto de asquerosas lesmas que, vorazes, lutavam por nadar em suas pústulas a fome inextinguível que traziam, transformando-o no mais repugnante e infernal monturo que me fora dado conhecer! Quis furtar-me à presença de mim mesmo, procurando incidir no ato que me desgraçara, isto é — reproduzi a cena patética do meu suicídio mentalmente, como se por uma segunda vez buscasse morrer a fim de desaparecer na região do que, na minha ignorância dos fatos de além-morte, eu supunha o eterno esquecimento!

Mas nada havia capaz de aplacar a malvada visão!  Ela era, antes, verdadeira! Imagem perfeita da realidade que sobre o meu físico-espiritual se refletia, e por isso me acompanhava para onde quer que eu fosse, perseguia minhas retinas sem luz, invadia minhas faculdades anímicas imersas em choques e se impunha à minha cegueira de Espírito caído em pecado, supliciando-me sem remissão! Na fuga precipitada que empreendi, ia entrando em todas as portas que encontrava abertas, a fim de ocultar-me em alguma parte. Mas de qualquer domicílio a que me abrigasse, na insensatez da loucura que me enredava, era enxotado a pedradas sem poder distinguir quem, com tanto desrespeito, assim me tratava. Vagava pelas ruas tateando aqui, tropeçando além, na mesma cidade onde meu nome era endeusado como o de um gênio — sempre aflito e perseguido. A respeito dos acontecimentos que com minha pessoa se relacionavam, ouvi comentários destilados em críticas mordazes e irreverentes, ou repassados de pesar sincero pelo meu trespasse, que lamentavam. Tornei a minha casa. Surpreendente desordem estabelecera-se em meus aposentos, atingindo objetos de meu uso pessoal, meus livros, manuscritos e apontamentos, os quais já não eram por mim encontrados no local costumeiro, o que muito me enfureceu. Dir-se-ia que se dispersara tudo! Encontrei-me estranho em minha própria casa! Procurei amigos, parentes a quem me afeiçoara. A indiferença que lhes surpreendi em torno da minha desgraça chocou-me dolorosamente, agravando meu estado de excitação. Dirigi-me então a consultórios médicos. Tentei fixar-me em hospitais, pois que sofria, sentia febre e loucura, supremo mal-estar torturava meu ser, reduzindo-me a desolador estado de humilhação e amargura. Mas, a toda parte que me dirigia, sentia-me insocorrido, negavam-me atenções, despreocupados e indiferentes todos ante minha situação. Em vão objurgatórias acompanhava para onde quer que eu fosse, perseguia minhas retinas sem luz, invadia minhas faculdades anímicas imersas em choques e se impunha à minha cegueira de Espírito caído em pecado, supliciando-me sem remissão! Na fuga precipitada que empreendi, ia entrando em todas as portas que encontrava abertas, a fim de ocultar-me em alguma parte. Mas de qualquer domicílio a que me abrigasse, na insensatez da loucura que me enredava, era enxotado a pedradas sem poder distinguir quem, com tanto desrespeito, assim me tratava. Vagava pelas ruas tateando aqui, tropeçando além, na mesma cidade onde meu nome era endeusado como o de um gênio — sempre aflito e perseguido. A respeito dos acontecimentos que com minha pessoa se relacionavam, ouvi comentários destilados em críticas mordazes e irreverentes, ou repassados de pesar sincero pelo meu trespasse, que lamentavam. Tornei a minha casa. Surpreendente desordem estabelecera-se em meus aposentos, atingindo objetos de meu uso pessoal, meus livros, manuscritos e apontamentos, os quais já não eram por mim encontrados no local costumeiro, o que muito me enfureceu. Dir-se-ia que se dispersara tudo! Encontrei-me estranho em minha própria casa! Procurei amigos, parentes a quem me afeiçoara. A indiferença que lhes surpreendi em torno da minha desgraça chocou-me dolorosamente, agravando meu estado de excitação. Dirigi-me então a consultórios médicos. Tentei fixar-me em hospitais, pois que sofria, sen-tia febre e loucura, supremo mal-estar torturava meu ser, reduzindo-me a desolador estado de humilhação e amargura. Mas, a toda parte que me dirigia, sentia-me insocorrido, negavam-me atenções, despreocupados e indiferentes todos ante minha situação. Em vão objurgatórias (Nota do BLOG reclamações) azedas saíam de meus lábios acompanhadas da apresentação, por mim próprio feita, do meu estado e das qualidades pessoais que meu incorrigível orgulho reputava irresistíveis: — pareciam alheios às minhas insistentes algaravias, ninguém me concedendo sequer o favor de um olhar! azedas saíam de meus lábios acompanhadas da apresentação, por mim próprio feita, do meu estado e das qualidades pessoais que meu incorrigível orgulho reputava irresistíveis: — pareciam alheios às minhas insistentes algaravias, ninguém me concedendo sequer o favor de um olhar!

Aflito, insofrido, alucinado, absorvido meu ser pelas ondas de agoirantes amarguras, em parte alguma encontrava possibilidade de estabilizar-me a fim de lograr conforto e alívio! Faltava-me alguma coisa irremediável, sentia-me incompleto! Eu perdera algo que me deixava entonteado, e essa “coisa” que eu perdera, parte de mim. mesmo, atraía-me para o local em que se encontrava, com as irresistíveis forças de um ímã, chamava–me imperiosa, irremediavelmente! E era tal a atração que sobre mim exercia, tal o vácuo que em mim produzira esse irreparável acontecimento, tão profunda a afinidade, verdadeiramente vital, que a essa “coisa” me unia — que, não sendo possível, de forma alguma, fixar-me em nenhum local para que me voltasse, tornei ao sítio tenebroso de onde viera: — o cemitério! Essa “coisa”, cuja falta assim me enlouquecia, era o meu próprio corpo — o meu cadáver! — apodrecendo na escuridão de um túmulo! (3)

(3) Certa vez, há cerca de vinte anos, um dos meus dedicados educadores espirituais — Charles — levou-me a um cernitério público do Rio de Janeiro, a fim de visitarmos um suicida que rondava os próprios despojos em putrefação. Escusado será esclarecer que tal visita foi realizada em corpo astral. O perisplrito do referido suicida, hediondo qual demônio, infundiu-me pavor e repugnância. Apresentava-se completamente desfigurado e Irreconhecível, coberto de cicatrizes, tantas cicatrizes quantos haviam sido os pedaços a que ficara reduzido seu envoltório carnal, pois o desgraçado jogara-se sob as rodas de um trem de ferro, ficando despedaçado. Não há descrição possível para o estado de sofrimento desse Espírito! Estava enlouquecido, atordoado, por vezes furioso, sem se poder acalmar para raciocinar, Insensível a toda e qualquer vibração que não fosse a sua imensa desgraça! Tentamos falar-lhe: — não nos ouvia! E Charles, tristemente, com acento indefinível de ternura, falou: — “Aqui, só a prece terá virtude capaz de se impor! Será o único bálsamo que poderemos destilar em seu favor, santo bastante para, após certo período de tempo, poder aliviá-lo…” — E essas cicatrizes? — perguntei, impressionada. — “Só desaparecerão — tornou Charles — depois da expiação do erro, da reparação em existências amargas, que requererão lágrimas ininterruptas, o que não levará menos de um século, talvez muito mais… Que Deus se amerceie dele, porque, até lá…” Durante muitos anos orei por esse infeliz irmão em minhas preces diárias. — (Nota da médium).

.(…………………………..)

 Um dia, profundo alquebramento sucedeu em meu ser a prolongada excitação. Fraqueza insólita conservou–me aquietado, como desfalecido. Eu e muitos outros cômpares de minha falange estávamos extenuados, incapazes de resistirmos por mais tempo a tão desesperadora situação. Urgência de repouso fazia-nos desmaiar frequentemente, obrigando-nos ao recolhimento em nossas desconfortáveis cavernas. Não se tinham passado, porém, sequer vinte e quatro horas desde que o novo estado nos surpreendera, quando mais uma vez fomos alarmados pelo significativo rumor daquele mesmo “comboio” que já em outras ocasiões havia aparecido em nosso Vale. Eu compartilhava o mesmo antro residencial de quatro outros indivíduos, como eu portugueses, e, no decorrer do longo martírio em comum, tornáramo-nos inseparáveis, à força de sofrermos juntos no mesmo tugúrio  de dor. (Nota do BLOG: tugúrio – choupana,casebre)

 Dentre todos, porém, um sobremaneira me irritava, predispondo-me à discussão, com o usar, apesar da situação precária, o monóculo inseparável, o fraque bem talhado e respectiva bengala de castão de ouro, conjunto que, para o meu conceito neurastênico e impertinente, o tornava pedante e antipático, num local onde se vivia torturado com odores fétidos e podridão e em que nossa indumentária dir-se-ia empastada de estranhas substâncias gordurosas, reflexos mentais da podridão elaborada em torno do envoltório carnal. Eu, porém, esquecia-me de que continuava a usar o “pince-nez” com seu fio de torçal, a sobrecasaca dos dias cerimoniosos, os bigodes fartos penteados…

Confesso que, então, apesar da longa convivência, lhes não conhecia os nomes. No Vale Sinistro a desgraça é ardente demais para que se preocupe o calceta (Nota calceta:acorrentado)  com a identidade alheia… O conhecido rumor aproximava-se cada vez mais…

Saímos de um salto para a rua… Vielas e praças encheram-se de réprobos como das passadas vezes, ao mesmo tempo que os mesmos angustiosos brados de socorro ecoavam pelas quebradas sombrias, no intuito de despertarem a atenção dos que vinham para a costumeira vistoria…

Até que, dentro da atmosfera densa e penumbrosa, surgiram os carros brancos, rompendo as trevas com poderosos holofotes. Estacionou o trem caravaneiro na praça lamacenta. Desceu um pelotão de lanceiros. Em seguida, damas e cavalheiros, que pareciam enfermeiros, e mais o chefe da expedição, o qual, como anteriormente esclarecemos, se particularizava por usar turbante e túnica hindus. Silenciosos e discretos iniciaram o reconhecimento daqueles que seriam socorridos. A mesma voz austera que se diria, como das vezes anteriores, vibrar no ar, fez, pacientemente, a chamada dos que deveriam ser recolhidos, os quais, ouvindo os próprios nomes, se apresentavam por si mesmos.

Outros, porém, por não se apresentarem a tempo, impunham aos socorristas a necessidade de procurá-los. Mas a estranha voz indicava o lugar exato em que esta-riam os míseros, dizendo simplesmente: Abrigo número tal… Rua número tal. .

Ou, conforme a circunstância: — Dementado… Inconsciente…

Não se encontra no abrigo… Vagando em tal rua… Não atenderá pelo nome… Reconhecível por esta ou aquela particularidade …

Dir-se-ia que alguém, de muito longe, assestava poderosos telescópios até nossas desgraçadas moradas, para assim informar detalhadamente do momento decorrente a expedição laboriosa… Os obreiros da Fraternidade consultavam um mapa, iam rapidamente ao local indicado e traziam os mencionados, alguns carregados em seus braços generosos, outros em padiolas… De súbito ressoou na atmosfera dramática daquele inferno onde tanto padeci, repercutindo estrondosamente pelos mais profundos recôncavos do meu ser, o meu nome, chamado para a libertação! Em seguida, ouviram–se os dos quatro companheiros que comigo se achavam presentes na praça. Foi então que lhes conheci os nomes e eles o meu. Disse a voz longínqua, como servindo-se de desconhecido e poderoso alto-falante: — Abrigo número 36 da rua número 48  Atenção !. .. Abrigo número 36 — Ingressar no comboio de socorro — Atenção !… — Camilo Cândido Botelho — Belarmino de Queiroz e Souza — Jerônimo de Araújo Silveira — João d’Azevedo — Mário Sobral — Ingressarem no comboio… (4-B)

(4-B) Perdoar-me-á o leitor o não transcrever na integra os nomes destas personagens, tal como foram revelados pelo autor destas páginas. — (Nota da médium)

Foi entre lágrimas de emoção indefinível que galguei os pequenos degraus da plataforma que um enfermeiro indicava, atencioso e paciente, enquanto os policiais fechavam cerco em torno de mim e de meus quatro companheiros, evitando que os desgraçados que ainda ficavam subissem conosco ou nos arrastassem no seu

turbilhão, criando a confusão e retardando por isso mesmo o regresso da expedição. Entrei. Eram carros amplos, cômodos, confortáveis, cujas poltronas individuais como que estofadas com arminho branco apresentavam o espaldar voltado para os respiradores, que dir-se-iam os óculos das modernas aeronaves terrenas. Ao centro quatro poltronas em feitio idêntico, onde se acomodaram enfermeiros, tudo indicando que ali permaneciam a fim de guardar-nos. Nas portas de entrada lia-se a legenda entrevista antes, na flâmula empunhada pelo comandante do pelotão de guardas:

Legião dos Servos de Maria

Dentro em pouco a tarefa dos abnegados legionários estava cumprida. Ouviu-se no interior o tilintar abafado de uma campainha, seguido de movimento rápido de suspensão de pontes de acesso e embarque dos obreiros. Pelo menos foi essa a série de imagens mentais que concebi… O estranho comboio oscilou sem que nenhuma sensação de galeio e o mais leve balanço impressionassem nossa sensibilidade. Não contivemos as lágrimas, porém, em ouvindo o ensurdecedor coro de blasfêmias, a grita desesperada e selvagem dos desgraçados que ficavam, por não suficientemente desmaterializados ainda para atingirem camadas invisíveis menos compactas.

Eram senhoras que nos acompanhavam, por nós velando durante a viagem. Falaram-nos com doçura, convidando-nos ao repouso, afirmando-nos solidariedade. Acomodaram-nos cuidadosamente nas almofadas das poltronas, quais desveladas, bondosas irmãs de Caridade…

Afastava-se o veículo… A pouco e pouco a cerração de cinzas se ia dissipando aos nossos olhos torturados, durante tantos anos, pela mais cruciante das cegueiras: – a da consciência culpada!

Apressava-se a marcha… O nevoeiro de sombras ficava para trás como pesadelo maldito que se extinguisse ao despertar de um sono penoso… Agora as estradas eram amplas e retas, a se perderem de vista… A atmosfera fazia-se branca como neve… Ventos fertilizantes sopravam, alegrando o ar…

Deus Misericordioso ! … Havíamos deixado o Vale Sinistro !… Lá ficara ele, perdido nas trevas do abominável !…

Lá ficara, incrustado nos abismos invisíveis criados pelo pecado dos homens, a fustigar a alma daquele que se esqueceu do seu Deus e Criador!

Comovido e pávido, pude, então, elevar o pensamento à Fonte Imortal do Bem Eterno, para humildemente agradecer a grande mercê que recebia ! ’’

CAPITULO III

No Hospital «Maria de Nazaré»

Depois de algum tempo de marcha, durante o qual tínhamos a impressão de estar vencendo grandes distâncias, vimos que foram descerradas as persianas, facultando-nos possibilidade de distinguir, no horizonte ainda afastado, severo conjunto de muralhas fortificadas, enquanto pesada fortaleza se elevava impondo respeitabilidade e temor na solidão de que se cercava. Era uma região triste e desolada, envolvida em neblinas como se toda a paisagem fora recoberta pelo sudário de continuadas nevadas, conquanto oferecendo possibilidades de visão. Não se distinguia, inicialmente, vegetação nem sinais de habitantes pelos arredores da fortaleza imensa. Apenas longas planícies brancas, colinas salpicando a vastidão, assemelhando-se a montículos acumulados pela neve. E ao fundo, plantadas no centro dessa nostalgia desoladora, muralhas ameaçadoras, a fortaleza grandiosa, padrão das velhas fortificações medievais, tendo por detalhe primordial meia dúzia de torres cujas linhas grandemente sugestivas despertariam a atenção de quem por ali transitasse. Funda inquietação percutiu rijamente em nossas sensibilidades, aviventando receios algo acomodados durante o trajeto. Que nos esperaria para além de tão sombrias fronteiras?…

Pois era evidente que para ali nos conduziam… Vista, a distância, a edificação apavorava, sugerindo rigores e disciplinas austeras…

Assaltou-nos tal impressão  de poder, grandeza e majestade que nos sentimos ínfimos, acovardados só no avistá-la. Aproximando-se cada vez mais, o comboio finalmente atracou fronteiro a um grande portão, que seria a entrada principal. Para além da cornija, caprichosamente trabalhada, urdida em letras artísticas e graúdas, lia-se em idioma português esta inscrição já nossa conhecida, a qual, como por encanto, serenou nossa agitação logo que a descobrimos:

Legião dos Servos de Maria

seguindo-se  esta indicação que, emocionante, compeliu–nos a novas apreensões:

Colônia Correcional

Sem resposta às indagações confusas do pensamento ainda lerdo e atordoado pelas longas dilacerações que me vinham perseguindo havia muito, desobriguei-me de averiguações e deixei que os fatos seguissem livre curso, percebendo que meus companheiros faziam o mesmo. Não faltava à fortaleza nem mesmo a defesa exterior de um fosso. Uma ponte desceu sobre ele e o comboio venceu o empecilho fazendo-nos ingressar definitivamente nessa Colônia, não isentados, porém, de sérias preocupações quanto ao futuro que nos aguardava. De entrada, notamos pelas imediações numerosos militares, qual se ali se aquartelasse um regimento.

Entretanto, estes muito se assemelhavam aos antigos soldados egípcios e hindus, o que muito nos admirou. Sobre o pórtico da torre principal lia-se esta outra inscrição, parecendo–nos tudo muito interessante, como um sonho que nos cumulasse de incertezas:

Torre de Vigia

Em que localidade estaríamos?… Voltaríamos a Portugal?… Viajaríamos através de algum país desconhecido, enquanto a neve se espalhava dominando a paisagem ?. . , Passamos sem estacionar por essa grande praça militar, certo de que se trataria de uma fortificação guerreira idêntica às da Terra, conquanto revestida de indefinível nobreza, inexistente nas congêneres que conhecêramos através da Europa, pois não poderíamos, então, avaliar a verdadeira finalidade da sua existência naquelas regiões desoladas do Invisível inferior, cercadas de perigos bem mais sérios do que os que poderíamos presumir. Com surpresa verificamos que entrávamos em cidade movimentadíssima, Conquanto recoberta por extensos véus de neve, ou cerração pesada. Não fazia, porém, frio intenso, o que nos surpreendeu, e o Sol, mostrando-se a medo entre a cerração, deixava ocasião não só para nos aquecermos, mas também para distinguirmos o que houvesse em derredor. Edifícios soberbos impunham-se à apreciação, apresentando o formoso estilo português clássico, que tanto nos falava à alma. Indivíduos atarefados, neles entravam e deles saíam em afanosa movimentação, todos uniformizados com longos aventais brancos, ostentando ao peito a cruz azul-celeste ladeada pelas iniciais: L. S. M. Dir-se-iam edifícios, ministérios públicos ou departamentos. Casas residenciais alinhavam-se, graciosas e evocativas na sua estilização nobre e superior, traçando ruas artísticas que se estendiam laqueadas de branco, como que asfaltadas de neve . A frente de um daqueles edifícios parou o comboio e fomos convidados a descer. Sobre o pórtico definia-se sua finalidade em letras visíveis:

Departamento de Vigilância

(Seção de Reconhecimento e Matrícula)

Tratava-se da sede do Departamento onde seríamos reconhecidos e matriculados pela direção, como internos da Colônia. Daquele momento em diante estaríamos sob a tutela direta de urna das mais importantes agremiações pertencentes à Legião chefiada pelo grande Espírito Maria de Nazaré, ser angélico e sublime que na Terra mereceu a missão honrosa de seguir, com solicitudes maternais, Aquele que foi o redentor dos homens! ‘’

(…………………

Memórias de um suicida